Ensino domiciliar

Homescholling é uma das principais bandeiras do governo federal

Legalizado em países como Estados Unidos, Bélgica, Áustria, Austrália, Canadá, Noruega, França, Portugal, Nova Zelândia, Rússia e Itália, a educação domiciliar, também conhecida como homescholling, é a formação letrada no domicílio do aluno, ministrada por especialistas contratados ou especialistas. Conforme a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases Educacionais (LDB), a Educação é “dever do Estado e da família”, bem como “é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na Educação Básica a partir dos quatro anos de idade”.

O tema veio novamente à tona no país ao final do ano passado, quando a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal votou que o ensino domiciliar não deve ser admitido no país enquanto o Congresso não editar uma lei que regulamente a prática. O julgamento contou com nove dos dez votos apontando que, por enquanto, o ensino domiciliar não pode ser considerado um meio lícito de cumprimento do dever de prover a educação.

Em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro, tendo esta como uma de suas bandeiras, articulava a edição de uma medida provisória (MP) sobre o tema. Mais tarde, o governo federal mudou de estratégia: segundo o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, por uma questão de proteção às crianças e segurança jurídica, sem citar que a MP ainda poderia perder a validade antes de ser aprovada pelo Congresso.

O poder Executivo, portanto, encaminhou à Câmara dos Deputados para regulamentar a prática no país. De acordo com o Projeto de Lei 2401/19, os pais que optarem pelo ensino domiciliar terão de formalizar a escolha com o Ministério da Educação (MEC).  A opção da família terá de ser renovada a cada doze meses, por meio de plataforma virtual do MEC, com a inclusão do plano pedagógico individual que corresponde ao novo ano letivo. Para fins de certificação da aprendizagem, o estudante matriculado nesse modelo será submetido a uma avaliação anual por parte do MEC.

Polêmica

Os defensores do método defendem que ele tem a oferecer um ambiente de aprendizagem diferenciado do que é oferecido atualmente nas escolas tradicionais. Para a Doutora em Educação Adriana Dickel, o movimento homescholling não é um movimento das classes populares, mas sim da elite. “Desde que se tem conhecimento da história humana, a educação da elite sempre teve esses cuidados especiais da própria elite por conta de que as crianças são a continuidade daquela classe social, elas são depositárias das expectativas de continuidade da própria elite. E isso não nos é estranho, uma vez que, por mais que hoje a elite tenha a obrigação de matricular os jovens na escola, elas fornecem outros conjuntos de ferramentas para que seus filhos tenham ascendência sobre os demais, pois é uma guerra de posição nessa estrutura social”, explica.

A professora destaca que, cada vez mais, países têm permitido esse movimento e regularam mediante processo de avaliação sistemático, enquanto outros países proibiram. “Estão assumindo que a educação das novas gerações é uma educação que tem de ser feita mediante a institucionalização das crianças. O aporte fundamentalmente público para a maioria e um aporte privado para aqueles que considerarem que o serviço público educacional não é suficiente para seus filhos. Então, em um mundo como o nosso, o mundo capitalista, enxergamos esse movimento do público e do privado na esfera da educação das crianças”, destaca Dickel.

O Doutor em Filosofia Cláudio Dalbosco diz que, para discutir a temática, é preciso questionar qual o papel da educação e qual o papel da escola. Destaca que um deles é de socialização no sentido de criar oportunidades sociais, principalmente para os grupos e classes sociais desfavorecidos, que, sem a escola, essa parcela da população não teria acesso.

Para ele, caso passe a vigorar o ensino domiciliar, vai acontecer um fenômeno curioso. “Possivelmente, teremos experiências diversificadas, mas com um perfil semelhante. Ensino domiciliar para ricos, mas na tendência de um pensamento único, bem como ensino domiciliar para pobres, também com a tendência de pensamento único com uma propensão, sobretudo, religiosa”, considera.

Convivência social

Conforme destaca Cláudio Dalbosco, a tendência que um projeto como esses causa na sociedade é um fechamento. Para ele, o problema concentra-se na educação escolar, uma vez que o governo deveria moilizar a comunidade, famílias e instituições de ensino para debater sobre questões que dizem respeito à escola, temas mais relevantes em termos de organização como um todo.

“Esse suposto isolamento, que tiraria o aluno do convívio escolar,  traz como consequência um mundo mais fechado de ideias, de mais dificil convivência; não há dúvida de que a direção dessa proposta que trará como consequência social preocupante é acentuar o individualismo já existente”, desabafa o filósofo.

Já Adriana salienta que a escola é  um ambiente institucional, da cultura ocidental, para prover recursos não só em termo de conhecimento acumulado, mas emocionais, sociais e psíquicos para enfrentar uma realidade que é extremamente complexa e atravessada por várias tensões e que o homescholling não olha para o processo de socialização.

“Temos de olhar se a escola como instituição está conseguindo ajudar as crianças a prover esses recursos psíquicos e socioafetivos para o enfrentamento das grandes contradições que é viver em sociedade. Essa relação entre família e escola é extremamente necessária. Há um currículo em ação na família, independente de estar ou não responsável pelo processo escolar dos meus filhos. Mas isso não me isenta de uma imensa responsabilidade pela permanência e aproveitamento do que o estado me oferece”, diz.

A escola

Para Dickel, numa realidade em que o homescholling faça parte da rotina de ensino do país, a instituição escola seguirá com os mesmos dilemas que sempre teve, que é propiciar uma formação de qualidade do sujeito integral. “Eu penso que uma das consequências negativas é a ausência de pressão de setores importantes da sociedade, de elite, sobre a qualidade da educação que é oferecida atualmente,” afirma.

Pontua que, quanto mais a escola conseguir dialogar com as famílias, melhor será para sua qualificação. Então, não contar com quadros de pais desse extrato da população também fragiliza a escola como um todo, porque muitas das pressões necessárias da escola é a pressão proveniente das famílias. “Aumenta a responsabilidade das famílias que necessitam da escola pública e privada e que não conseguem, com qualidade suficiente ou com os recursos de que dispõem, prover uma educação em casa”, salienta a professora.

Tendencialmente, o que se pode visualizar é que, caso o homescholling se torne realidade, será possível perceber uma acentuação da precarização das situações de trabalho e da remuneração dos professores. Por outro lado, vai se acentuar a dificuldade de regulamentação, de fiscalização do próprio estado.

“Quando falamos que o foco deve ser a educação escolar, sobretudo a educação pública, é no sentido de que o poder público precisa mobilizar a sociedade, as instituições e a escola, envolvendo evidentemente professores e alunos na meta da qualidade. Mas dentro de um modo de organização clássico, existente e que, apesar de todas as dificuldades, comprovou historicamente que melhorou a humanidade”, afirma Dalbosco.

 

Viés de classe

Muito mais que viés ideológico-político, temos um viés de classe, econômico, que se institui em torno do ideário de uma elite que tem condições de prover esses recursos individualmente, sem precisar do estado para isso e que gostaria de desresponsabilizar do estado a educação de seus filhos.

“O homescholling tenta deslocar somente para o domiciliar, e esse movimento somente desloca o problema. Mas o problema vai permanecer porque a maioria da população precisa dessa escola, não tem condições financeiras de prover o que somente uma pequena elite poderá prover. Esta minoria busca situar um interesse de classe social para privilegiar recursos materiais numa educação que eles julgam mais adequada para a reprodução do seu estado social”, afirma Adriana Dickel.

O homescholling é porta-voz de uma elite que considera que, apesar de eles pagarem por um ensino privado, terem todo o gasto com deslocamento, ainda têm de prover todo um currículo paralelo para que seus filhos tenham a educação que eles julgam necessária. Obviamente, o que se quer é que não se tenha essa obrigação para que eles possam investir todos os recursos nessa educação familiar. Para o Doutor em filosofia Cláudio Dalbosco, o tema é muito mais uma tentativa de o governo desviar o foco das questões educacionais centrais.

“Nós até podemos discutir educação domiciliar numa sociedade democrática, em que as famílias tenham a liberdade de escolher outra possibilidade desde que esteja regulamentado e sob condução e orientação legal do estado. Porém, a maioria das famílias não tem renda, não tem tempo e vem de uma tradição cultural de não se aprofundar na cultura e não ter preparo pedagógico intelectual necessário. Como essas famílias vão conduzir uma educação familiar?”, questiona.

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